Muitos portugueses têm hoje bens, imóveis ou familiares em Espanha, e não é raro que surjam dúvidas quando chega o momento de tratar da herança.
Sabia que, se for único herdeiro, a lei espanhola permite, em certos casos, evitar a escritura pública notarial e optar por uma via mais rápida e económica?
Neste artigo explicamos como funciona a chamada “instância de herdeiro único”, quais são os requisitos legais, as vantagens e limitações e o que muda quando o herdeiro é português e a sucessão envolve bens situados em Espanha.
Regra geral e exceção no direito registral espanhol
A regra geral para inscrever um imóvel herdado no Registro da Propriedade de Espanha é que a transmissão seja formalizada em escritura pública de aceitação e adjudicação de herança.
Contudo, o artigo 14.º, n.º 3, da Lei Hipotecária espanhola (LH) estabelece uma exceção:
se não existir nenhum interessado com direito a legítima, nem comissário ou pessoa autorizada para adjudicar a herança, o título sucessório acompanhado dos documentos previstos será suficiente para inscrever diretamente a favor do único herdeiro os bens e direitos registados em nome do falecido.
Esta exceção é desenvolvida no artigo 79.º do Regulamento Hipotecário espanhol (RH).
Na prática, significa que o herdeiro único pode requerer a inscrição dos bens apenas mediante uma instância privada, assinada por ele e com assinatura reconhecida notarial ou registralmente.
A Direção-Geral de Segurança Jurídica e Fé Pública espanhola (DGSJFP) confirma que esta via é excecional e só pode ser usada quando todos os requisitos são cumpridos estritamente (Resoluções de 14 de dezembro de 2016 e de 7 de junho de 2023).
Quando o único herdeiro é português: aplicação prática e enquadramento europeu
Nos casos de sucessões internacionais — por exemplo, quando o herdeiro é português e o falecido tinha bens em Espanha — aplica-se o Regulamento (UE) n.º 650/2012, conhecido como Regulamento Sucessório Europeu.
Este regulamento determina que:
a) se o falecido residia habitualmente em Espanha, aplica-se o direito espanhol;
b) se residia habitualmente em Portugal, aplica-se o direito português, salvo se tiver escolhido expressamente a lei espanhola no testamento.
Mesmo quando a sucessão se rege pelo direito português, a inscrição dos imóveis localizados em Espanha deve respeitar a lei espanhola (lex rei sitae).
Requisitos
Um único herdeiro português pode inscrever bens herdados em Espanha mediante instância privada, desde que:
- seja o único herdeiro reconhecido pelo título sucessório português (testamento, declaração de herdeiros ou Certificado Sucessório Europeu);
- não existam herdeiros legitimários (com direito a legítima);
- não haja contador-partidor nem comissário designado, salvo se o herdeiro for o único interessado;
- a documentação estrangeira esteja devidamente traduzida e apostilhada (Convenção da Haia, 1961);
- o imóvel esteja já inscrito em nome do falecido no Registro da Propriedade espanhol.
O artigo 79.º do RH exige que a instância seja assinada pelo herdeiro e que essa assinatura seja legitimada. Se o herdeiro estiver em Portugal, pode:
a) assinar perante notário português, com apostilha de Haia;
b) comparecer no Consulado de Espanha em Portugal;
c) ou assinar perante notário espanhol, caso esteja em Espanha.
Documentação
À solicitação deverão ser anexados os seguintes documentos:
- certidão de óbito do falecido;
- certificado do Registro Geral de Últimas Vontades;
- testamento ou declaração de herdeiros;
- Certificado Sucessório Europeu.
NOTA: os documentos emitidos em Portugal devem ser apresentados com tradução juramentada para o espanhol (art. 36 RH) e, sempre que possível, acompanhados do Certificado Sucessório Europeu, que tem validade direta em todos os Estados-Membros (arts. 62.º e segs. do Regulamento 650/2012).
Bens móveis: contas bancárias, veículos e participações
A instância aplica-se sobretudo a imóveis, mas é importante conhecer a prática quanto aos bens móveis:
- contas bancárias: juridicamente, basta provar a qualidade de herdeiro; contudo, muitos bancos espanhóis exigem escritura notarial ou Certificado Sucessório Europeu;
- veículos: a Direção-Geral de Tráfego (DGT) pode autorizar a mudança de titularidade com documentação portuguesa, mas algumas entidades pedem documento público adicional;
- ações ou quotas sociais: normalmente exigem escritura pública para registar a transmissão nos livros de sócios ou contas de valores.
Vantagens e limites da instância do herdeiro único
Vantagens
— redução de custos e prazos;
— alternativa válida e legalmente reconhecida para sucessões simples;
— ideal quando não há legitimários nem contador-partidor.
Limites
— procedimento excecional e de aplicação restrita;
— requer documentação rigorosa, tradução e apostilha;
— pode gerar entraves práticos junto de bancos ou seguradoras.
(FAQs) Perguntas Frequentes
Posso usar uma instância privada se o imóvel estiver registado em nome do falecido?
Sim. Quando o imóvel já se encontra devidamente registado e existe apenas um herdeiro único, sem outros legitimários, a instância privada é legalmente admissível para proceder à inscrição em nome do herdeiro.
E se o imóvel não estiver registado (primeira inscrição)?
Nestes casos, a instância não é suficiente. O artigo 205 da Lei Hipotecária (Espanha) exige escritura pública para a primeira inscrição (“inmatriculação”) de um bem imóvel. Assim, o herdeiro deverá formalizar o processo através de um notário.
O que acontece se o falecido era casado e existirem bens comuns?
Em regra, deve realizar-se primeiro a liquidação da comunhão conjugal antes de inscrever os bens herdados.
Contudo, a Direção-Geral de Segurança Jurídica e Fé Pública espanhola (DGSJFP) admitiu excecionalmente a inscrição direta por instância quando esta incluía as quotas de ambos os cônjuges (Resolução DGRN de 10 de setembro de 2018).
Atenção: trata-se de uma decisão isolada, não de uma regra geral.
Conclusão
A instância de herdeiro único, prevista nos arts. 14 LH e 79 RH, é um instrumento válido e útil, mas de aplicação restrita.
Quando o herdeiro é português, a sucessão pode ser tratada sem escritura pública apenas se todos os requisitos legais forem cumpridos integralmente.
O elemento internacional (traduções, apostilha, impostos) aumenta a formalidade do processo, pelo que, em casos complexos ou com terceiros envolvidos, continua a ser recomendável optar pela escritura pública notarial.
Em resumo: se é herdeiro único e herdou bens em Espanha, a instância pode ser a solução mais rápida e económica — mas deve ser usada com prudência e assessoria jurídica especializada.