Noticias de Regueiro Delgado + Partners

Divórcio e "curatela": a sentença 767/2024 do Supremo Tribunal de Justiça espanhol se pronuncia sobre a sua compatibilidade

Publicados: 11 de julho de 2024, 14:00
  1. Últimas notícias
Divórcio e "curatela": a sentença 767/2024 do Supremo Tribunal de Justiça espanhol se pronuncia sobre a sua compatibilidade

A “Ley 8/2021” introduziu uma reforma fundamental no direito espanhol em relação à capacidade jurídica das pessoas com deficiência. Esta lei, que ajusta o ordenamento espanhol aos padrões da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006, eliminou as figuras tradicionais da interdição ("incapacitación") e da tutela, promovendo, em seu lugar, medidas de apoio personalizadas.

Introduz, assim, a nova instituição da “curatela”, concebida como um mecanismo flexível para auxiliar as pessoas nos atos em que necessitam de apoio, respeitando ao máximo sua autonomia e evitando uma substituição completa da sua vontade.

Nesse contexto normativo, a sentença n.º 767/2024 do Supremo Tribunal de Justiça da Espanha assume particular relevância, pois trata de um caso que reflete a aplicação prática dos princípios consagrados pela nova Lei 8/2021. O que torna interessante essa decisão é como o Supremo Tribunal conseguiu equilibrar a necessidade de proteger uma pessoa vulnerável com seu direito fundamental de tomar decisões sobre sua própria vida.

Assim, estabelece um precedente importante sobre como lidar com situações complexas, nas quais a capacidade de uma pessoa com deficiência de tomar decisões de particular relevância, como um divórcio, é posta em questão.


ANTECEDENTES DO CASO

O caso em questão envolve Jorge, um homem cuja capacidade jurídica foi modificada judicialmente devido a um diagnóstico psiquiátrico e a quem foi designada uma curadora (sua filha) para assisti-lo em alguns atos jurídicos e supervisionar seu tratamento médico. Apesar dessas medidas, Jorge decidiu pedir o divórcio da esposa, gerando um conflito legal em relação à sua capacidade de tomar essa decisão de forma autônoma.

Em particular, a esposa de Jorge, Teodora, opôs-se ao pedido de divórcio, alegando que o marido não tinha a capacidade necessária para decidir sobre uma questão tão pessoal e que era imprescindível a autorização de sua curadora. No entanto, tanto o Tribunal de Primeira Instância quanto o Tribunal de Apelação de A Coruña rejeitaram o recurso, reconhecendo a plena legitimidade de Jorge para solicitar o divórcio de forma autônoma. Teodora então decidiu recorrer em cassação.

Nesse processo de cassação, o Ministério Público havia adotado uma posição contrária à decisão dos tribunais inferiores, sugerindo que Jorge deveria ser ouvido novamente para verificar se compreendia o significado e as consequências da sua decisão de se divorciar. Além disso, em cumprimento da sua função nomofilática, considerava que o Tribunal deveria estabelecer um critério interpretativo segundo o qual os tribunais podem e devem dispor ex oficio a audição da pessoa sujeita a medidas de proteção sempre que, no decorrer de um processo, surgirem dúvidas sobre a correta interpretação dos seus desejos, vontade e preferências.


A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESPANHOL

Contrariamente ao que foi sustentado pela recorrente e aos argumentos do Ministério Público, o Supremo Tribunal decidiu em linha com as instâncias anteriores, afirmando que Jorge tinha plena legitimidade para pedir o divórcio sem a necessidade de novo suporte ou verificação.

O Tribunal espanhol reafirma o princípio segundo o qual o direito de pedir o divórcio é um ato personalíssimo, e que, neste caso, não era necessária a intervenção da curadora de Jorge.

Aliás, a sentença relativa ao processo de apoio de Jorge havia estabelecido “uma curatela para assisti-lo na realização dos «atos jurídicos, econômicos e comerciais complexos» e para supervisionar «seu tratamento médico e tudo o que se relaciona com a sua saúde»”. 
O Supremo Tribunal esclarece que “os «atos jurídicos complexos» aos quais se refere a sentença que estabelece os apoios para o Sr. Jorge são de natureza patrimonial e não pessoal”. Portanto, “do conteúdo das medidas de apoio estabelecidas pela sentença, não se pode inferir, como pretende o recurso, que para pedir o divórcio fosse necessária a intervenção da curadora”.

Além disso, o Supremo Tribunal afirma que os tribunais anteriores já haviam avaliado adequadamente a capacidade de Jorge de compreender plenamente sua decisão e que, portanto, não era necessário submetê-lo novamente a uma audição. 
Pois, em resposta às considerações levantadas pelo Ministério Público, o Tribunal esclarece então que, “em geral”, nos processos de família que envolvem uma pessoa privada em todo ou em parte de sua autonomia, “não deve ser questionada a vontade manifestada pela sua representação legal”, e que, ainda que “em casos excepcionais” em que surgirem “indícios evidentes” de uma “distorção da vontade” o tribunal poderia dispor ex officio a audição dessa pessoa, no caso em questão não havia essa necessidade, tendo o tribunal de apelação adotado medidas suficientes para garantir que Jorge persistia na vontade de se divorciar.


IMPLICAÇÕES E RELEVÂNCIA DA SENTENÇA

A decisão do Supremo Tribunal espanhol destaca a absoluta prioridade da vontade do indivíduo, desde que esteja baseada em uma clara compreensão do ato, como no caso de Jorge.

Esta sentença é de grande importância não só porque reafirma o direito das pessoas com autonomia limitada de tomar decisões fundamentais sobre sua vida pessoal, mas também porque o faz em um contexto em que o Ministério Público, teoricamente protetor dos interesses dessas pessoas, havia recomendado maior cautela.

A decisão do Supremo Tribunal, portanto, estabelece um padrão elevado para a proteção da autonomia pessoal nos termos da Ley 8/2021 e constitui um valioso guia para futuras interpretações jurídicas em situações semelhantes, assegurando que os direitos das pessoas com deficiência sejam plenamente reconhecidos e respeitados no ordenamento jurídico espanhol. 

Noticias relacionadas

Nacionalidade espanhola para portugueses: guia prático e atualizado 13 out

Nacionalidade espanhola para portugueses: guia prático e atualizado

Há 16 horas Últimas notícias
Espanha e Portugal partilham séculos de história comum e, desde 1986, a pertença à União Europeia.Essa proximidade faz com que cada vez mais cidadãos portugueses se estabeleçam em Espanha por motivos de trabalho, estudo ou afinidade cultural. Segundo dados oficiais, são já dezenas de milhares os
Como recuperar uma fatura não paga numa relação Portugal – Espanha: guia legal para empresas 6 out

Como recuperar uma fatura não paga numa relação Portugal – Espanha: guia legal para empresas

06/10/2025 Últimas notícias
Índice Onde reclamar: Portugal ou Espanha? Que lei se aplica ao contrato Procedimentos europeus úteis entre Portugal e Espanha E se já existir uma sentença de condenação em Portugal? Aspetos práticos a considerar Casos práticos Conclusão As relações comerciais entre Portugal e
Ius soli vs. ius sanguinis: o labirinto jurídico da nacionalidade em casos internacionais 29 set

Ius soli vs. ius sanguinis: o labirinto jurídico da nacionalidade em casos internacionais

29/09/2025 Últimas notícias
Índice Ius soli VS. ius sanguinis O problema: a criança eue “não é de nenhum lado” A perspectiva espanhola e portuguesa  Conclusão Ius soli VS. ius sanguinis A atribuição da nacionalidade no momento do nascimento não é uma questão uniforme a nível internacional. O ius soli e o ius
Responsabilidade penal das empresas em Espanha: contexto e desafios atuais 22 set

Responsabilidade penal das empresas em Espanha: contexto e desafios atuais

22/09/2025 Últimas notícias
No Direito Penal atual, a responsabilidade penal das pessoas coletivas tornou-se um dos pilares centrais do direito penal económico, tanto em Espanha como no plano internacional. Desde a introdução do artigo 31.º bis do Código Penal espanhol em 2010 (alterado em 2015), abriu-se um novo campo onde

Financiado pela União Europeia - NextGenerationEU. No entanto, os pontos de vista e opiniões expressos são exclusivamente do(s) autor(es) e não refletem necessariamente os da União Europeia ou da Comissão Europeia. Nem a União Europeia nem a Comissão Europeia podem ser responsabilizadas pelo mesmo.